Meu corpo
está morrendo. A cada palavra, meu corpo está morrendo. Cada palavra é um fio
de cabelo a menos, um imperceptível milímetro de ruga a mais - uma mínima
extensão de tempo num acúmulo cada vez mais insuportável. (Caio Fernando Abreu:
Inventário do ir-remediável).
19 de agosto.
Que data terrível para se comemorar um aniversário. Para falar a verdade não há
data boa para se comemorar aniversário. Aniversário não é coisa para se
comemorar. Por que alguém teria motivos para comemorar o dia simbólico que
marca a sua velhice? Por que alguém iria se debruçar sobre uma data que faz
referência ao seu nascimento, mas na verdade simboliza a sua velhice? É um dia
a mais, uma semana a mais, um mês a mais, um ano a mais. E tudo isso não seria,
em resumo, a velhice? Tenho para mim que comemorar aniversário é comemorar a
velhice e a morte porque com o tempo envelhecemos e envelhecer é morrer cada
vez mais todos os dias.
Festa de
aniversário é a mais perfeita celebração da velhice.
Ele também
pensava assim como eu e resolveu sair de casa para que não lhe fizessem
surpresas. Pensou em ir para um lugar distante e difícil de ser encontrado.
Iria levar consigo duas peças de roupas, uma escova de dentes, um pente, um
creme dental, uma antologia de poemas norte americanos, os Ensaios de Emerson
também iriam na bagagem, mas dificilmente ele pegaria este livro. Saiu
escondido para ninguém o ver e não estragarem seu dia, não suportava alguém dizendo
“feliz aniversário”.
Felicidade em
saber que estava ficando mais velho? Ora, ora, isso para ele era o cúmulo do
absurdo.
Saiu com
pressa, como que se estivesse atrasado para o enterro de algum parente próximo
e idoso, como se o tempo estivesse passando mais rápido para ele do que para os
outros, como se a vida lhe acenasse da sacada de um prédio enorme e ameaçasse
pular de lá de cima, se jogar no vento e se precipitar no chão, como se as
horas se transformasse em minutos ou os minutos em segundos, como se os
milênios se transformassem em séculos e os anos em dias. Ele saiu apressado,
olhando para o relógio que apertava seu pulso esquerdo para que ele, com o
incômodo, não se esquecesse que o tempo está passando a todo momento, passando
muito mal educadamente sem pedir licença.
Abriu a porta
da casa, saiu, fechou-a e foi caminhando devagar. Devia ser umas cinco horas da
manhã, pois o sol ainda não havia despertado. Entrou no fusca prata, ligou o
rádio para ouvir alguma coisa que lhe fizesse parar de pensar na data que todos
os anos lhe perseguia, no rádio tocava uma música que ele achou até
interessante no começo, pois tinha um instrumental muito bem trabalhado, com
solos de guitarra, bateria cadenciada, alguma coisa como Van Halen e Pink
Floyd, mas em seguida entrou um vocal rouco cantando a seguinte letra:
Hoje é o dia
E mais um ano se passou
Eu posso falar de meus amores
Sem covardias
De minhas dores,
Porque hoje é o dia
Sem covardia
Da grande celebração da vida.
Eu nasci, você nasceu
E estamos aqui
Todos os dias
Cantando este momento lindo
Em que ficamos mais velhos,
Experientes neste campanário
Porque hoje é o dia de nosso aniversário.
Ele desligou
o rádio antes da música acabar. Melhor dizendo, deu um soco no aparelho que em
seguida parou de tocar. Colocou a chave na ignição, ligou o fusca possante e
saiu em disparada no meio da rua “hoje é o dia”, pulou um quebra-molas perto da
esquina que dava acesso a uma grande praça onde tinha um relógio enorme no
centro “mais um ano se passou”, olhou para o relógio da praça e percebeu que
este estava muito adiantado, pois comparado ao seu aquele não poderia estar
certo, “Cantando este momento lindo em que ficamos mais velhos”. Tentou
esquecer, mas a música não saiu de seus ouvidos e o seguiu na Avenida ACM
“experientes neste campanário, hoje é o dia de nosso aniversário”.
Após umas
duas horas percorrendo a cidade, passando em lugares que nunca tinha ido
resolveu parar ao avistar uma pousada. Ao aproximar-se leu o letreiro que dizia
assim: “Pousada Sossego”. Certamente ali seria um ótimo lugar para se esconder
por vinte e quatro horas, até que passasse o último segundo daquele dia, mas
para seu desassossego ao aproximar-se leu outras letras menores, mais parecendo
um aviso do que uma propaganda ao lado do nome da pousada: “PROMOÇÃO! Diárias
pela metade do preço porque hoje comemoramos 25 anos de serviço prestado a
você”.
“Sossego uma
porra!”, pisou no acelerador do fusca com tanta força que quase afundou o
assoalho, saiu em disparada, fechou um caminhão de gás, atravessou o sinal
vermelho e quase atropela uma mulher idosa que ia caminhando com dificuldade
sobre a calçada. “Sossego uma porra!”- repetiu em voz alta. Viajou por mais
cerca de meia hora e parou em um posto para abastecer, pois a gasolina do fusca
já estava na reserva.
– Bota quanto? – o frentista
perguntou apressado, pois tinha mais três clientes para ele atender.
– Sei lá, completa aí.
– Está indo pra longe?
Ele olhou
assustado para o frentista e ficou em silêncio por alguns segundos. Não queria
dizer para onde ia, na verdade não saberia dizer, só sabia que estava em fuga
até que terminasse aquele dia.
– Vou para o norte. – respondeu
disfarçadamente.
– Ôpa! O lugar é bom. Hoje vai
ter um festão lá. Vão comemorar o aniversário da cidade.
– Mas que diabos! Parece que o
mundo inteiro resolveu comemorar aniversário hoje!
O frentista
olhou pra ele e perguntou – hoje é seu aniversário também?
Ele ficou em
silêncio por alguns instantes. Sem querer responder a pergunta entrou no fusca
com muita pressa. Deu o dinheiro da gasolina pela janela, recebeu as chaves e
antes do frentista lhe falar mais alguma coisa ligou o fusca e saiu em
disparada no meio da avenida.
Viajou por
muito tempo em direção ao sul. Só queria um lugar para passar o dia. Um lugar
escondido, que nenhum de seus conhecidos pudesse vê-lo. Que ninguém soubesse
que aquele era o dia que simbolizava a sua velhice, e o pior é que ainda
faltavam muitas horas para o dia acabar. Ainda ia ter que suportar com muita
força a ideia de envelhecer, uma coisa que quase insuportavelmente ficava
martelando-lhe a cabeça. “Hoje é o dia”, pulou outro quebra-molas “mais um ano
se passou”, mais outro quebra-molas, aquele seria um péssimo lugar para quebrar
o fusca, diminuiu a velocidade e avistou um lugar parecido com uma pousada, era
uma casa muito afastada das outras. Parou em frente e leu um letreiro
enferrujado: “Pousada Nova”. De todos os lugares no mundo aquele deveria ser o
mais adequado para alguém que estivesse em fuga no dia de seu aniversário.
Entrou, pediu
um quarto, a recepcionista pediu sua identidade, mas ele disse que não estava
com ela, mentiu. A mulher rabugenta, com um cigarro de fumo no bico deu uma
cusparada no chão, passou o pé em cima e fez uma lista meio amarelecida no
chão, chutou uma ratoeira com um pobre rato preso pelo pescoço para debaixo do
balcão e cedeu a chave.
– Quarto 19! Fica no fim do
corredor à direita de quem vai, a esquerda de quem vem. – insistiu em completar
a informação – uma porta marrom.
– Tem banheiro?
– Só esse aqui do térreo.
Ele não se
importou. Pegou as chaves e foi em direção ao quarto. Percebeu que todas as
portas eram marrons. Com as vistas um pouco embaçadas teve um pouco de
dificuldade para enxergar o número 19 em uma delas. Ao lado do número 19 era
para ter o 18, mas tinha um 11, dois números enamorados tão distantes e tão
perto ao mesmo tempo. De qualquer forma, colocou a chave na fechadura e a porta
cedeu sem dificuldades. Entrou, deitou na cama olhando para o teto e teve a
impressão que ao longe alguém cantava “parabéns pra você”. Fechou os olhos como
quem dorme e adormeceu como quem morre.
(LEON CARDOSO)
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